António Damásio
Neurologista nascido em Portugal e radicado nos E.U.A., estuda e escreve sobre a relação entre emoção e cognição, e a consciência.
Link
http://www.uiowa.edu/~interdis/damasio.htm
"As emoções e os pensamentos, que são centrais para a visão de racionalidade que estou propondo, são uma poderosa manifestação dos impulsos e dos instintos, constituindo uma parte essencial da sua atividade."
Damásio, 1996, p.143
"A regulação biológica relacionada com o tronco cerebral e o hipotálamo (cujos circuitos 'mantem' os padrões neurais inatos que se afiguram mais críticos para a sobrevivência) é complementada por controles no sistema límbico. Não cabe discutir aqui a complicada anatomia e o funcionamento pormenorizado desse setor relativamente grande, mas cabe salientar que o sistema límbico participa também no estabelecimento de impulsos e instintos e tem uma função especialmente importante nas emoções e sentimentos."
grifo do autor, idem, p.146
"Com efeito, os sentimentos parecem depender de um delicado sistema de múltiplos componentes que é indissociável da regulação biológica; e a razão parece, na verdade, depender de sistemas cerebrais específicos, alguns dos quais processam sentimentos. Assim, pode existir um elo de ligação, em termos anatômicos e funcionais, entre razão e sentimentos e entre esses e o corpo. É como se estivéssemos possuídos por uma paixão pela razão, um impulso que tem origem no cerne do cérebro, atravessa outros níveis do sistema nervoso e, finalmente, emerge quer como sentimento quer como predisposições não conscientes que orientam a tomada de decisão. A razão, da prática à teórica, baseia-se provavelmente nesse impulso natural por meio de um processo que faz lembrar o domínio de uma técnica e de uma arte. Retire-se o impulso, e não é mais possível alcançar essa perícia. Mas o fato de se possuir esse impulso não faz de nós, automaticamente, peritos."
idem, p.276
"É esse o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensão e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação mental poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, e da estrutura e funcionamento do organismo biológico, para o outro."
idem, p. 280
"A dor e o prazer são as alavancas de que o organismo necessita para que as estratégias instintivas e adquiridas atuem com eficácia. Muito provavelmente, foram também esses os instrumentos que controlaram o desenvolvimento das estratégias sociais de tomada de decisão. Quando muitos indivíduos, em grupos sociais, experienciaram as consequências dolorosas de fenômenos psicológicos, sociais e naturais, tornou-se possível o desenvolvimento de estratégias culturais e intelectuais para fazer face à experiência de dor e conseguir reduzi-la.
A dor e o prazer ocorrem quando nos tornamos conscientes dos perfis do estado do corpo que se afastam nitidamente do intervalo de variação de nossos sentimentos de fundo. A configuração dos estímulos e dos padrões de atividade cerebral percebidos como dor ou prazer são estabelecidos a priori na estrutura cerebral. Eles ocorrem porque os circuitos são ativados de um determinado modo e são instruídos geneticamente para se constituirem de um determinado modo. Embora nossas reações à dor e ao prazer possam ser alteradas pela educação, constituem um excelente exemplo de fenômenos mentais que dependem da ativação de disposições inatas."
idem, p.294
"Se a dor constitui a alavanca para o desenvolvimento apropriado dos impulsos e dos instintos e para o desenvolvimento de estratégias eficazes de tomada de decisão, conclui-se que alterações na percepção da dor devam ser acompanhadas de problemas de comportamento. Parece ser isto exatamente o que acontece. Os indivíduos afetados por uma estranha doença conhecida por ausência congênita de dor não adquirem estratégias normais de comportamento. Alguns deles passam o tempo rindo, apesar de a doença os levar a destruir as articulações (privados de dor, movimentam as articulações muito além dos limites mecânicos permissíveis, rompendo assim os ligamentos e as cápsulas das articulações), a queimaduras graves, a golpes (não retiram a mão de uma chapa quente ou de uma lâmina que lhes rasga a pele). Visto conseguirem ainda sentir prazer, podendo assim ser influenciados por sensações positivas, é notável que seu comportamento seja tão deficiente. Mas mais fascinante ainda é a hipótese de esses mecanismos de alavanca participarem não só no desenvolvimento mas também no melhoramento das estratégias de tomada de decisão."
idem, p.298
"A dor e o prazer não são imagens gêmeas ou simétricas uma da outra, pelo menos não o são em termos de suas funções no apoio à sobrevivência. De certa forma, e a maior parte das vezes, é a informação associada à dor que nos desvia do perigo iminente, tanto no momento presente como no futuro antecipado. É difícil imaginar que os indivíduos e as sociedades que se regem pela busca do prazer, tanto ou mais ainda do que pela fuga à dor, consigam sobreviver."
idem, p.299
"O sofrimento proporciona a melhor proteção para a sobrevivência, uma vez que aumenta a probabilidade de darmos atenção aos sinais de dor e agirmos no sentido de evitar sua origem ou corrigir suas consequências."
idem, p.298
"As representações dispositivas constituem o nosso depósito integral de saber e incluem tanto o conhecimento inato como o adquirido por meio da experiência. O conhecimento inato baseia-se em representações dispositivas existentes no hipotálamo, no tronco cerebral e no sistema límbico. Podemos concebê-lo como comandos da regulação biológica necessários para a sobrevivência (isto, é, o controle do metabolismo, impulsos e instintos). Eles controlam muitos processos, mas de um modo geral, não se transformam em imagens na mente.(...)
O conhecimento adquirido baseia-se em representações dispositivas existentes tanto nos córtices de alto nível como ao longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo do nível do córtex. Algumas dessas representações dispositivas contêm registros sobre o conhecimento imagético que podemos evocar e que é utilizado para o movimento, o raciocínio, o planejamento e a criatividade; e outras contêm registros de regras e de estratégias com as quais manipulamos essas imagens. A aquisição de conhecimento novo é conseguida pela modificação contínua dessas representações dispositivas."
idem, p.132/133
"O principal papel das estruturas desses setores é o de regular os processos vitais básicos sem recorrer à mente e à razão. O padrões inatos* da atividade dos neurônios nesses circuitos não geram imagens (embora as consequências da sua atividade possam ser imagéticas); eles regulam mecanismos homeostáticos sem os quais não existe sobreviência.
*Observe-se que quando uso a palavra inato (literalmente presente no nascimento) não estou excluindo a existência de um papel para o ambiente e para a aprendizagem na determinação de uma dada estrutura ou padrão de atividade."
idem, p.137
"Ao nascer, o cérebro humano inicia seu desenvolvimento dotado de impulsos e instintos que incluem não apenas um kit fisiológico para a regulação do metabolismo, mas também dispositivos básicos para fazer face ao conhecimento e ao comportamento social. Ao terminar o desenvolvimento infantil, o cérebro encontra-se dotado de níveis adicionais de estratégias para a sobrevivência. A base neurofisiológica dessas estratégias adquiridas encontra-se entrelaçada com a do repertório instintivo, e não só modifica seu uso como amplia seu alcance. Os mecanismos neurais que sustentam o repertório suprainstintivo podem assemelhar-se, na sua concepção formal geral, aos que regem os impulsos biológicos e ser também restringidos por esses últimos. No entanto, requerem a intervenção da sociedade para se tornarem aquilo em que se tornam, e então por isso relacionados tanto com uma determinada cultura como com a neurobiologia geral."
idem, p.154/155
"Assim, à medida que progredimos da infância para a idade adulta, o design dos circuitos cerebrais que representam nosso corpo em evolução e sua interação com o mundo parece depender tanto das atividades em que o organismo se empenha como da ação de circuitos biorreguladores inatos, à medida que os últimos reagem a tais atividades. Essa abordagem sublinha a inadequação de conceber cérebro, comportamento e mente em termos de natureza versus educação, ou de genes versus experiência. Nossos cérebros e nossas mentes não são tabulae rasae quando nascemos. Contudo, também não são, na sua totalidade, geneticamente determinados. A sombra genética tem um grande alcance mas não é completa. Os genes proporcionam a um dado componente cerebral sua estrutura precisa e a outro componente uma estrutura que está para ser determinada. No entanto, a estrutura a ser determinada só pode ser obtida sob a influência de três elementos: 1)a estrutura exata; 2)a atividade individual e as circunstâncias (nas quais a palavra final cabe ao meio ambiente humano e físico, assim como ao acaso); e 3)as pressões de auto-organização que emergem da extraordinária complexidade do sistema. O perfil imprevisível das experiências de cada indivíduo tem realmente uma palavra a acrescentar ao design dos circuitos, tanto direta como indiretamente, pela reação que desencadeia nos circuitos inatos e pelas consequências que tais reações têm no processo global de modelação de circuitos."
grifo do autor, idem, p.139/140
"Julgo que esses depósitos de fatos e estratégias para manipulação é armazenado, em estado de dormência e em suspenso, sob a forma de "representações disposicionais" ("disposições", para abreviar) nos setores cerebrais intermediários."
idem, p.120
"Repare que você nunca teria formado uma representação dispositiva se, em primeiro lugar, não tivesse construído uma representação perceptiva topograficamente cartografada: não parece existir nenhuma via anatômica de introduzir informação sensorial complexa no córtex de associação, que sustenta as representações dispositivas, sem utilizar primeiro os córtices sensoriais iniciais."
idem, p.135
"Diz-se frequentemente que o pensamento não é feito apenas de imagens, que é constituído também por palavras e por símbolos abstratos não imagéticos. Ninguém negará certamente que o pensamento inclui palavras e símbolos arbitrários. Mas essa afirmação não dá conta do fato de tanto as palavras como outros símbolos serem baseados em representações topograficamente organizadas e serem, eles próprios, imagens. A maioria das palavras que utilizamos na nossa fala interior, antes de dizermos ou escrevermos uma frase, existe sob a forma de imagens auditivas ou visuais na nossa consciência. Se não se tornassem impulsos, por mais passageiras que fossem, não seriam nada que pudéssemos saber. Isso é verdade até mesmo para aquelas representações topograficamente organizadas que não são tomadas com atenção pela consciência, mas que são ativadas de forma oculta. Sabemos, por experiências de priming, que, embora essas representações sejam processadas em segredo absoluto, podem influenciar o curso do pensamento e até irromper na consciência um pouco mais tarde. (Priming consiste em ativar uma representação de forma incompleta ou então ativá-la mas não lhe dar atenção.)"
idem, p.134
"Em outras palavras, as imagens sobre as quais nós raciocinamos (imagens de objetos específicos, ações e esquemas relacionais; imagens de palavras que ajudam a traduzir tudo isso sob a forma de linguagem) não só devem estar "em foco" - algo que é obtido pela atenção - como também devem ser "mantidas ativas na mente" -algo que é realizado pela memória de trabalho em alto nível."
idem, p.110
"Essas diversas imagens-perceptivas, evocadas a partir do passado real e evocadas a partir de planos para o futuro - são construções do cérebro. Tudo que se pode saber ao certo é que são reais para nós próprios e que há outros seres que constróem imagens do mesmo tipo. (...)Não sabemos, e é improvável que alguma vez venhamos a saber, o que é a realidade "absoluta".
Como conseguimos criar essas maravilhosas construções? Elas parecem engendradas por uma maquinaria neural complexa de percepção, memória e raciocínio. A construção é por vezes regulada pelo mundo exterior ao cérebro, isto é, pelo mundo que está dentro de nosso corpo ou em torno dele, com uma pequena ajuda da memória do passado. É isso que se passa quando geramos imagens perceptivas. Outras vezes, a construção é inteiramente dirigida pelo interior do cérebro, pelo nosso doce e silencioso processo de pensamento, de cima para baixo. É o que se passa, por exemplo, quando evocamos a melodia favorita ou recordamos cenas visuais com os olhos fechados, quer sejam uma reposição de um acontecimento real ou fruto de nossa imaginação."
idem, p.124
"À medida que o cérebro vai incorporando representações dispositivas de interações com entidades e situações relevantes para a regulação inata, ele aumenta a probabilidade de abranger entidades e situações que podem ou não ser diretamente relevantes para a sobrevivência. E, quando isso sucede, nosso crescente sentido daquilo que o mundo exterior possa ser é apreendido como uma modificação no espaço neural em que o corpo e o cérebro interagem."
idem, p.146
"Se, por um lado, existe uma realidade externa, por outro, o que dela sabemos chegar-nos-ia pela intervenção do próprio corpo em ação por meio das representações de suas perturbações. Nunca saberemos quão fiel é o nosso conhecimento em relação à realidade "absoluta"."
idem, p.266
"Todos possuimos provas concretas de que sempre que recordamos um dado objeto, um rosto ou uma cena, não obtemos uma reprodução exata, mas antes uma interpretação, uma nova versão reconstruída do original. Mais ainda, à medida que a idade e experiência se modificam, as versões da mesma coisa evoluem.(...)
Uma das tentativas de resposta a esse problema sugere que as imagens mentais são construções momentâneas, tentativas de réplica, de padrões que já foram experienciados, nas quais a probabilidade de se obter uma réplica exata é baixa, mas a de ocorrer uma reprodução substancial pode ser alta ou baixa, dependendo das circunstâncias em que as imagens foram assimiladas e estão sendo lembradas."
grifo do autor, idem, p.128
"Escondidos atrás dessas imagens, raramente ou nunca chegando ao nosso conhecimento, existem de fato numerosos mecanismos que orientam a geração e o desenvolvimento de imagens no espaço e no tempo. Esses mecanismos utilizam regras e estratégias incorporadas em representações dispositivas. Eles são essenciais para o nosso pensar, mas não constituem o conteúdo dos pensamentos."
grifo do autor, idem, p.136
"Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser."
idem, p.279
"Não quero com isso dizer que a neurobiologia possa salvar o mundo, mas apenas que o aumento gradual de conhecimentos sobre os seres humanos pode nos ajudar a encontrar melhores formas de gerir as coisas humanas. Há algum tempo que os seres humanos atravessam uma nova fase evolutiva em termos intelectuais, na qual suas mentes e cérebros tanto podem ser escravos como donos de seus corpos e das sociedades que constituem."
idem, p.286
Nenhum comentário:
Postar um comentário